Quase sempre dormíamos em sua casa, em Copacabana. Até deixavam os colchões no corredor. Dormíamos até o meio dia.
Ele tinha três irmãs, que ficavam empilhadas no menor quarto do apartamento. Ele, como único filho homem de família chinesa, no maior. Maior até que o dos pais.
Chamava uma delas e mandava descer pra comprar comida pra gente. Com o dinheiro delas. Ficávamos com vergonha. Pelo menos, que aceitassem o reembolso, mas ele ficava com tudo tudo.
Chamava uma delas e mandava descer pra comprar comida pra gente. Com o dinheiro delas. Ficávamos com vergonha. Pelo menos, que aceitassem o reembolso, mas ele ficava com tudo tudo.
Como a família toda só falava chinês entre si, pensávamos que não soubessem falar português. Ao menos a mãe. Isso fez com que nos sentíssemos à vontade pra falar certas barbaridades com a certeza de não sermos compreendidos. Algum tempo depois, com toda a sua calma oriental, ele nos disse que sua mãe falava português. E muito bem.
Outro problema que tivemos, foi com a irmã mais nova, de quinze anos, Chaun Men. Ou coisa parecida. Não sei como se escreve, mas pela sonoridade, passamos a chamá-la assim, também.
De novo, em situação difícil: " O nome dela não é Chaun Men. Ela nasceu no Brasil e se chama Liliane ".
Ora, há anos frequentávamos a casa e nunca a ouvimos ser chamada de Liliane.
" Chaun Men é apelido! Quer dizer Neném que faz cocô fedido! ". Tão bonita a menina e a gente chamando ela desse jeito!
Abrir a geladeira era uma experiência sensorial. Uma mistura de cheiros. Um monte de coisas que nem sabíamos direito o que era. Era difícil até mesmo beber água. Na sala, um altar para Buda, entidade feminina, cheia de oferendas já passando um tanto do prazo de validade. È, eu também não sabia que o Buda chinês era mulher.
Às vezes tinha um varal de peixe secando. No meio da sala! Dois cabos de vassoura, uma corda de nylon e alguns pregadores de roupa. Sempre nos ofereciam peixe pra comer. Nunca conseguimos aceitar.
Um dia, chegando da farra, havia um colchão de casal e um de solteiro. A cama da mãe dele tinha quebrado e ela pegou um dos nossos, sem autorização. No par ou ímpar, perdi pro Rodrigo e fui dormir no colchão de casal, bem mais espaçoso.
Não tinha sido um mau negócio, até ela abrir a porta do quarto e me pegar espalhado na cama dela. Até acho que ela não se importou. Eu, quase me enfiei debaixo da mesa do computador.
Wu Chun-I ( família, na frente ) era hacker. Vendia programas piratas pela internet. Ficávamos horas nos chats pré internet, falando com um monte de gente desconhecida.
Quarto cheio de parafernália tecnológica, no meio daquela tradição oriental. Uma guitarra, que nunca tocou.
Parecia o Garfield. Meio gordinho, preguiçoso. Das melhores almas que conheci.
Nunca tinha visto ele triste, de cara fechada. Até o dia em que fomos visitá-lo no hospital. Lá, eu vi o médico falar pra mãe dele que podia alugar uma cama de hospital. Mas a cadeira de rodas, era melhor comprar ... Aquele filho da puta!
Nos primeiros dias, ficávamos falando sozinhos. Ás vezes, só pela companhia. Ele não dizia nada, imerso nos seus pensamentos. Até que foi melhorando e voltando a sorrir.
Certo dia, estava com outro amigo que eu não conhecia no quarto dele. Seus pais iam pedir comida japonesa e nos ofereceram. Nunca tinha provado. Aceitamos sem pensar duas vezes.
Meio desconfiado, comecei pelos empanados. De frango e camarão. Paladares conhecidos. Fui passando pro sushi e sashimi. Comi, mas não gostei. Sem sabor. Preferia a comida chinesa, com seus molhos gordurosos e cores exuberantes.
O outro cara foi mais curioso. Tinha, no canto do prato, uma espécie de areia, de cor meio esverdeada. Ele pegou um tanto com a ponta dos dedos e jogou na boca. Imediatamente os olhos se encheram de lágrimas e ele saiu correndo pro banheiro. Voltou reclamando.
Chun-I deitado na cama, levantou a cabeça, deu uma olhada e voltou a deitar: " Isso que você comeu é raiz forte. Se mistura um pouquinho no shoyo e mergulha o sushi ". Pimenta concentrada! " Ah, e o matinho que você comeu, era só enfeite... ".
Ficou de bem com a vida. Tanto que comeu a enfermeira que o acompanhava e teve um filho com ela. Não me pergunte como. Eu mesmo não tive coragem.
Passamos nosso primeiro Reveillon no Rio, no restaurante da família dele. Avenida Atlântica, Praia de Copacabana, esquina com Princesa Isabel. Do outro lado, o Hotel Meridien.
Queria lugar melhor? Os fogos chovendo sobre nossas cabeças. De vez em quando, caía um sem estourar no meio da multidão e saía todo mundo correndo.
A gente com garrafa de espumante na mão, ou cidra. Terminei a noite tomando banho de cuecas no meio de um milhão de pessoas. Até hoje, não sei como tive coragem.
Max era o ser mais inteligente que conheci. Ao menos, ele pensava assim.
Discorria sobre todos os assuntos imagináveis, na maior cara-de-pau. Era tão seguro do que falava, que não ousávamos sequer questioná-lo.
A namorada dele era a mais bonita. Tinha o melhor emprego. Gostava das melhores bandas. E fizera a melhor faculdade. Max, the best.
Estudou informática na PUC. Trabalhava na IBM. Namorava a Eugénia. Portuguesa, com acento agudo no " e ". Varávamos noites jogando gamão e bebendo whisky. Às vezes, rodadas de poker. Havia conquistado o emprego de seus sonhos, analista de sistemas da IBM. Trabalhava de terno preto.
Adquiriu certo respeito por mim. Nunca se fez de superior. Me tratava de igual pra igual.
Ele colocava em discussão a maneira certa de se equilibrar no metrô ou como deveria fazer pra picar uma cebola e obter a menor quantidade de cortes. Vidas solitárias.
Com o passar do tempo, tornou-se mais humano. Deixou de ser superior a todos. Víamos juntos as lutas de boxe do Tyson, em pleno auge.
Uma vez, fui até o apartamento dele. Metade do prédio sem energia. A metade onde estavam os elevadores, claro. Doze andares, no escuro. Cheguei a tempo de ver o início. Não vi o final, pois fui na cozinha pegar uma cerveja. Quando voltei, mais um nocaute.
Apaixonou-se pela sua chefa na empresa. Mulher separada, uns dez anos mais velha. Nunca iria olhar pra ele. Ao menos, o que pensávamos. Até que conseguiu. Mulher e emprego que desejava. Estava feliz.
Um dia, me chamou pra sair e comer alguma coisa. Fomos a uma boate da moda na Barra da Tijuca. Ficamos bebendo e olhando a luta de boxe no telão. Estranhamente triste, apesar de tudo. Na volta, paramos no pizza hut. Depois, ele me deixou em casa.
Éramos todos tão amigos, que sempre sabíamos do paradeiro um do outro. Morávamos perto. Flamengo e Catete. Até o Chun-I já tinha se mudado pra lá. O único que morava com a família. No outro final de semana, eenchemos a secretária eletrônica com mensagens não retornadas. Descobrimos que havia ido pra Manaus. Tirou férias e viajou. Sem se despedir. Sem falar nada.
Não íamos na esquina sem que os outros soubessem. Veio pra Manaus e contraiu meningite. Quando soubemos, já havia sido sepultado. Doença daquelas sem velório. Pertences queimados. Parentes em quarentena. Vinte e cinco anos de idade . Dizia que iria morrer cedo. Do coração.
Acertou, pelo menos, em parte.
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